quarta-feira, outubro 29, 2003

Estranhos de passagem.

A câmara não se sente. A indignação sobrepõem-se ao género, ao thriller e sacode-nos. Stephen Frears filmou a vida, a vida de dois imigrantes em Londres. A cidade que nos é dada a ver é muito mais suja e extravasa os seus postais, na verdade, poderia ser qualquer outra, uma vez que Londres ficou uma cidade anónima. Anónima como a vida, a subvida das pessoas que fazem um trabalho que não vemos, que nos fazem as camas nos hoteis ou que limpam as secretárias dos edifícios em que trabalhamos horas antes de lá chegarmos. Nós nunca estamos lá para as ver. São gente que trafica mercadorias ilícitas, como elas próprias, como os orgãos dos seus próprios corpos. Gente que vive a morrer devagar, que não vemos. Que insistimos em não respeitar porque não vemos. “Estranhos de Passagem” é um filme muito triste, muito bonito.

Na Europa, a questão da emigração já não é nova mas é de hoje. Todos o sabemos: não é um problema de resolução fácil e está longe de ser consensual, mas a todos diz respeito. À direita, a estupidez e a ignorância está bem patente: a xenofobia (sob a capa do medo) chegou ao poder. À esquerda, outros populismos perigosos e cegos, teimam em não perceber, em primeiro lugar, as razões pelas quais, por exemplo ainda na semana passada pelo menos 13 africanos perderam a vida em pleno Mediterrâneo na sua desesperada tentativa de chegar à Europa. Fugiam de uma prematura morte certa, a que a miséria do seu país de origem os tinha condenado. Acolher e integrar imigrantes significa, antes de mais, conceder-lhes os nossos direitos mas também os deveres. Significa respeitar todas, sublinho todas, as suas especificidades de toda a natureza que não colidam com as regras pelas quais vivemos em sociedade. Mas não só, porque pura e simplesmemte não é possível abrir as fronteiras. É preciso combater a pobreza na sua origem. E de forma completamente diferente da que temos feito até aqui. Para começar a ajuda tem que ser necessariamente maior. Mas sobretudo deve ser melhor. A cada cêntimo de ajuda deveria corresponder um cêntimo para verficar e garantir a boa aplicação do primeiro. Sobre este assunto, a Europa podia e devia, pelo menos por uma vez, olhar para os Estados Unidos. E acredito, está aberta a polémica no isqueiro. “Estranhos de Passagem” de Stephen Frears é a Europa ao espelho.

Lucidez.

Por meia hora voltei a acreditar – seguramente muito mais do que acredito hoje em dia – que há homens e mulheres excepcionais. Falo sobretudo de políticos. Admiro Mario Vargas Llosa, escritor, jornalista e professor universitário peruano que ainda há uns anos atrás não hesitou em concorrer às eleições presidenciais no seu país. Gosto muito do que escreve e revejo-me em grande parte do seu pensamento. Na 5ª feira passada na RTP 1, Vargas Llosa respondeu com inteligência às perguntas pueris e desemxabidas de Judite de Sousa. Cito de memória duas respostas. Sobre ideologias: “A utopia é qualquer coisa de extraordinário mas é péssima e perigosa em termos colectivos. A utopia é individual, não pode ser exterior ao indivíduo”. Sobre o acto de escrever: “Tenho mais prazer em reescrever do que em escrever, pela primeira vez.”

sexta-feira, outubro 24, 2003

Onde começam os fins de semana?

Numa tosta mista aparada com manteiga por cima. No ruído das chavenas a serem empilhadas em cima da máquina do café. Nas conversas à volta das mesas que dão vida às letras impressas nos jornais do dia. No instante em que dou comigo a pensar que na simples leitura de um jornal começa a democracia. E que, para o bem e para o mal, a democracia também é um hábito. Na consciência da minha e nossa situação de privilégio. E no prazer em sentir que as conversas continuam à volta das mesas a dar vida às letras impressas nos jornais do dia. No sítio do costume. Na Ertilas, em Campo de Ourique, tenho a certeza que o fim de semana começou.

Este fim de semana vai começar com o país a arder, novamente.

sexta-feira, outubro 17, 2003

Wordsong, Al Berto

“les mots
les motsfruits les motsjus les mots à mordre les mots à tordre les mots à jouir les mots à cuire les mots voyage… »
Todas as palavras na voz de Pedro d’Orey. Todas as palavras na voz e no piano de Jorge Palma. Ficam para a memória.
Ontem no CCB.

quinta-feira, outubro 16, 2003

E agora

Vou aqui. Para ler de outra forma.

Fatias de Cá

Há sensivelmente dois anos, vi pela primeira vez uma peça do grupo de teatro Fatias de Cá. Corto Maltese ganhou vida numa velha e abandonada distilaria na Brogeira, junto a Torres Novas. A peça foi-nos levando – público confundido com actores - por salas diferentes ao centro da história, cada sala, cada cenário um conjunto de pranchas da personagem maior de Hugo Pratt. “Concerto em Ó Menor para Harpa e Nitroglicerina” era o nome da peça, encenada por Carlos Carvalheiro, e que tinha no livro “As Célticas” de Pratt a base do seu texto. A encenação resultou numa fórmula despretensiosa de fazer de banda desenhada, teatro. Gostei muito.O Grupo Fatias de Cá, que começou em Tomar em 79, tem andado a levar o teatro e todo o seu encanto por esse país fora e a levar de volta esse país fora para dentro de espaços esquecidos do nosso património. Reunir actores profissionais e amadores é apenas outra das singularidades deste projecto que vale a pena seguir. O grupo chegou agora a Lisboa e leva à cena no Castelo de São Jorge a peça “Diálogo das Compensadas”. Vi e não gostei. E escrevo-o assim porque trabalho que têm vindo a fazer merece todo o meu respeito e sinceridade. O texto de João Aguiar e a sua adaptação mais parece um panfleto. E dos fáceis. Se quiser formar a sua própria opinião sobre esta e todas as outras inúmeras peças actualmente em cena, entre em contacto com a central de reservas do grupo:
- tel.:249 314 161; fax:249 313 857; fatiasdeca@oninet.pt. E já agora, ainda em Lisboa, o grupo Fatias de Cá tem em cena "Comissão de Festas" de Alan Ayckbourn, na Casa do Concelho de Tomar.

Dois dias depois do “Diálogo das Compensadas” fui ao cinema ver "Good Bye, Lenin" de Wolfgang Becker. E gostei, diverti-me. Acho que não devemos perder a capacidade de brincar com os erros. Mesmos com os mais graves, mesmo se corremos o risco de os banalizar. Se não pudermos brincar, com inteligência, é porque não aprendemos nada.

quarta-feira, outubro 15, 2003

A minha praia do Porto 2

Descobri Ofir tarde, há uns cinco anos, mas é como se em criança lá tivesse passado muitas férias grandes. É sempre com pena que deixo Ofir. As Clarinhas e as Francesinhas, guloseimas da Nélia. O vento da praia no Inverno de uma aventura dos famosos Cinco. O pinhal encantado de um conto dos irmãos Grimm. As casas como as de uma historinha do Noddy. As recordações. E a possibilidade de fazer amigos depois dos 27 anos. Como se fossem amigos de infância. É sempre com alegria que regresso à nossa praia do Porto.

A minha praia do Porto

À minha frente noite. A estrada toda é igual. O vento manso. Mas a pressa entra pela fresta da janela do carro, a pressa é um vento com fúria e depressa o tracejado da estrada fica contínuo. Uma linha de branco no preto. Divide a estrada ao meio. Não a separa da noite, subtil curva que não acaba. Como a luz mortiça que ilumina pendurada as duas faixas da estrada. E a velocidade traz o sono ao lado no lugar do morto. Já não retiro prazer da condução. A céu aberto muita estrada me separa de casa, de um pouco de céu. A viagem é de alcatrão.

É sempre com pena que deixo a praia de Ofir.

terça-feira, outubro 14, 2003

Acontece

A irregularidade na produção de escrita é tal que já venho ao isqueiro como se não fosse o meu blog. Para ver se este ainda aqui está, para ver se alguém teve a gentileza de escrever por mim. Mas não desisto. Não tenho razões, não deixo a pressa entrar aqui.

sexta-feira, outubro 10, 2003

O Tamanho.

O meu amigo João Viana escreveu-me de Leuven, Bélgica, para onde voltou a estudar, agora gestão. A sua pequena estatura – com a qual volta a brincar logo no princípio do mail - nunca o impediu de mostrar a sua enorme e rara capacidade de sonhar, de criar e de fazer acontecer. A distância faz crescer a saudade e a lucidez que o levam a perguntar:

“Ser Português é talvez o elemento mais diferenciador que tenho aqui na minha classe: são todos espertos, inteligentes, altos e "bonitos" mas nenhum é português...o que à partida me permite ser uma marca "on my own". Hoje (terça-feira), o conceituado jornal Financial Times tem uma secção só sobre Portugal e que estranha mas simultaneamente agradável sensação foi ver o nosso Marquês na primeira página. De repente todos os colegas me chamaram a atenção para a notícia e pude ver reflectido nos seus olhos o meu orgulho em "ser" Português. Somos pequenos? Não! Certamente que não...mas a verdade é que achamos que somos, o que nos cria um problema, achamos sempre que temos de nos esforçar para sermos maiores, o que logo nos cria outro problema e na verdade apenas nos afasta do nosso "core business”, ou seja, sermos genuínos. Então o que somos?

Um abraço do tamanho da distância, João Perre Viana”

Assim, nesta formulação, já há na pergunta, uma parte da resposta. Concordo contigo, João, de pouco importa o tamanho...pelo tamanho. Já fomos pequenos, o que nos levou a ser grandes, e de novo pequenos. Pequenos mas bailarinos.

Não encontrei o dossier do FT sobre Portugal na rede mas fique descansado, passei os olhos sobre a versão portuguesa que o DE fez e não se perde muito.

Baixa Pombalina.

Tudo ou quase sobre a Baixa, agora aqui e sempre ali ao lado, nos links.
"Serei sempre da Rua dos Douradores como a humanidade inteira." escreveu, no Livro do Desassossego, Bernardo Soares, "um ajudante de guarda-livros trabalhando na baixa pombalina" na explicação de Fernando Pessoa para o seu semi-heterónimo.

sexta-feira, outubro 03, 2003

Conversas à mesa.

Uma boa refeição é a que se dá o tempo de se transformar em conversa. E os mais velhos ainda vão ensinando os mais novos. Ontem aprendi que, na década de 70, Juan Domingo Perón fez passar uma lei estranha, proibindo que o custo, que as despesas de publicidade fossem incluídas na margem dos produtos, logo, no preço ao consumidor. Com a brincadeira, o ditador argentino pretendia controlar os meios de comunicação de massas, na altura, a televisão, a rádio e a imprensa. O que levou muitos publicitários argentinos a deixar o seu país – claro que não faltavam outros motivos - e a levar a sua capacidade criativa para outras paragens. As ditaduras, todas sem excepção, sempre temeram o comércio. Após uma rápida procura na rede das redes, aqui deixo as palavras e o raciocínio - hoje em dia quase a roçar o politicamente correcto - de Perón pouco antes da sua morte: "En todos los tiempos de nuestra comunidad, ha sido un principio que nunca la información, la cultura y el desarrollo cultural del país estén en manos de particulares. A nadie se le hubiera ocurrido poner la educación en manos de particulares, como tampoco a nadie se le hubiera ocurrido entregar a manos de sociedades anónimas el funcionamiento y marcha de nuestras universidades. De la misma manera no puedo yo explicarme que la TV, que es un organismo preponderantemente cultural, que entra en la casa de todos los argentinos sin pedir permiso a nadie pueda estar en manos de quienes defienden otros intereses que no son los puros intereses de la comunidad" (28.5.74). Um outro chibo em festa, como disse Mario Vargas Llosa.

A conversa foi acompanhada de uns rins grelhados, no Fumeiro, mesmo no centro de Abrantes, no nº9 da Rua do Pisco. Se perguntar, toda a gente lhe devolverá, sem hesitações, o caminho para uma conversa certa.

quarta-feira, outubro 01, 2003

O último Português Suave.

E no que me diz respeito ficou, mais ou menos, tudo dito. Aqui.

Ainda de Paris.

“Poète, écrivain, critique, mais aussi cinéaste, dessinateur, acteur de la scène musicale française, Cocteau déploie, des années 10 aux années 60, une activité diverse et féconde”. Até 5 de Janeiro do próximo ano, em restrospectiva no Centre Pompidou. Comece por aqui. A exposição “Jean Cocteau, sur le fil du siècle” dá-nos uma perspectiva nova sobre o processo de contágio da modernidade. Por dentro. Cocteau é um homem da renascença, moderno.
O Beaubourg, como é tratado com um informal carinho pelos parisienses, oferece-nos do sexto piso uma vista caleidoscópica da cidade. E o seu restaurante Georges não é apenas uma normal cafetaria de museu, razão pela qual, desde que surgiu há pelo menos dois anos, pode ser, após uma exposição, local de conversa e prazer obrigatórios.


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