domingo, fevereiro 08, 2004

Baixa pressão.

O nevoeiro vai envolvendo a cidade que fica cada vez mais limpa. Deixa-nos apenas com as antenas, metal que o vento esculpe e torce, e a roupa estendida. Ao longe, só o silêncio e novamente o metal quieto, algumas gruas, ângulos rectos. Lisboa é uma imagem à qual recortaram o fundo.

Este nevoeiro poderia ter saído de dentro de nós.

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Sobre a ternura.

Na sexta-feira passada, o Miguel levou-nos a ver “Nunzio” de Spiro Scimone ao Teatro Taborda. A peça fala-nos de ternura, essa suave disposição para sentir.
A ternura é um gesto longo, é um olhar que se sopra com calma e assim vai a todo o lugar, ao riso e ao choro, e aí se demora.
“Dois homens, Nunzio e Pino. Vieram do sul pobre, vivem num modesto quarto do Norte. Nunzio trabalha numa fábrica de produtos químicos, Pino é um assassino a soldo. Um diálogo de homens sós, abandonados.” Continue a ler aqui e, definitivamente, não perca. No Teatro Taborda, até 29 de Fevereiro. O texto, excelente, escrito em dialecto de Messina - cidade portuária do norte da Sicília que viu nascer o autor - é-nos oferecido por uma encenação sóbria, que se revela no detalhe e na forma inteligente como nos dá o contexto. Miguel Borges (que pode ver no anúncio “Roucos” da Vodafone) e João Meireles, os actores, sopram ternura. Para a levarmos para outros palcos.

Muito a propósito.
Na semana passada os Artistas Unidos comemoraram quatro anos de uma actividade que não merece ser esquecida. Na mesma semana, Jorge Silva Melo, actor, encenador e director da companhia foi distinguido com o Prémio Almada para teatro, atribuído pelo Instituto das Artes (IA), no valor de 25 mil euros, e recusou. Recusou porque "não compete ao Estado distinguir uns (artistas) em detrimento de outros". E porque, como afirmou "Não gosto de prémios de Estado porque acredito - fui educado assim - que o artista é por natureza um traidor ao poder instituído", disse o encenador. E acrescenta "O artista desenvolve a sua actividade contra o Estado e, por isso, deve ser reconhecido por associações profissionais. O Estado não tem o direito de premiar passados." A notícia, está entre outro sítios, aqui. Esta segunda-feira, Silva Melo conversou com Carlos Vaz Marques na TSF, conversa que infelizmente não consegui ouvir na íntegra. Apanhei o suficiente para o ouvir explicar os adiamentos e desencontros – demasiados – com o poder local e central que depois de tanta espera se apresenta sob a forma de prémio. A atribuição do prémio é, assim, desnecessária e ofensiva.
O tema não é novo. A corajosa recusa do prémio deveria-nos fazer pensar. Concordo com a atitude não, completamente, com a sua justificação. Do particular para o geral e correndo o sério risco de ser maçador, aqui está a minha opinião:
a) a recusa de um prémio deste género é, graças a Deus, uma opção livre; a de Jorge Silva Melo tem o mérito de chamar a atenção para a sua causa (e nossa, a de quem gosta de teatro);
b) o Estado distingue, individual ou colectivamente, artistas: para tal concede ou não subsídios e apoios diversos; o que nos remete para - assumindo que este também deve, mesmo num país pobre e com carências estruturais como o nosso, um papel do Estado – a longa e difícil questão da definição do critério de atribuição;
c) os artistas, os criadores não devem ser subservientes com o poder que lhes deposita o subsídio e podem e devem funcionar como contra-poder – o de fazer sentir e pensar de outra forma, de uma forma tendencialmente nova e crítica, a par da conservação e divulgação da cultura entretanto produzida - o que me parece substancialmente diferente e por isso excessivo de ser “um traidor ao poder instituído” (eleito por todos, não?) e de desenvolver “a sua actividade contra o Estado” (a forma como todos nos organizamos colectivamente? para recolher impostos, por exemplo);
d) o Estado, ao contrário do que afirma Jorge Silva Melo “tem o direito de premiar passados”. Para isso há as ordens honoríficas. Não com prémios pecuniários, o que me parece completamente despropositado e mesmo estapafúrdio e aí Silva Melo está coberto de razão. E era justamente por aí que se devia ter ficado.
Tenho a perfeita consciência de o escrevi são pouco mais do que perfeitas banalidades – e de que fugi propositadamente à principal questão: não podendo financiar toda a cultura quais os critérios que devem presidir à atribuição de financiamentos públicos - mas à força de as ter procurado na imprensa e não as ter encontrado...
Sou daqueles que fica contente de ver o Taborda – ou outra qualquer sala de teatro - a transbordar de gente, que gosta de teatro, feliz (na sala ao lado, os Artistas Unidos representam “Terroristas” dos irmãos Presniakov). Sou daqueles que, no entanto, considera que um subsídio desvirtua a contra-cultura, o que não é ou pelo menos não é assim que entendo o conjunto da actividade dos Artistas Unidos. À qualidade e persistência, o estado não pode responder com o silêncio. Aqui também, o Estado não está a ser uma pessoa de bem.
Que critérios para atribuição de subsídios à cultura? A importância de uma árvore vem dos frutos que dá. Mas também, da sombra que oferece.

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